"O cinema mete-me um pouco de medo"
Márcia Breia, consagrada actriz de teatro, popularizada pela TV, nunca tivera "tanto espaço" criativo no cinema como Fernando Lopes lhe deu no filme 98 Octanas (em exibição). Fizeram O Fio do Horizonte e O Delfim, antes deste seu mais destacado papel no cinema. Cinema onde só fizera secundárias mais ou menos características, empregadas ou donas de café, restaurante, pensão... e lhe "mete um pouco de medo".
Rosto conhecido da TV, onde apareceu inclusive em telenovelas- que se aplica a "fazer bem" -, de Roseira Brava a Ninguém como tu, Márcia Breia acentua ao DN que gostou "bastante de fazer estas duas". "Era possível ir criando as personagens, o que nem sempre acontece, mas pode-se sempre dar a volta". No entanto, o percurso desta mulher, que adora "o dia, a vida, as pequenas coisas", é sobretudo teatral. Começou ainda estudante e é profissional há 40 anos, passou pelo Teatro Experimental do Porto - entrou na histórica encenação de Angel Facio para A Casa de Bernarda Alba, com Júlio Cardoso na protagonista -, veio para Lisboa contratada por Vasco Morgado e, desde 1975 está na Cornucópia, "uma segunda casa", onde fez "60 e tal peças", a que se juntam outras como Salazar, Deus, Pátria, Maria, de Maria do Céu Ricardo/Miguel Abreu.
Em 98 Octanas - que a maioria da crítica demoliu inesperadamente -, um quarentão (Rogério Samora) e uma jovem (Carla Chambel) encontram-se e seguem estrada fora, sem rumo, derivando para casa da avó dela. Espantosa avó, essa Pilar, bem diversa dos estereótipos de avós. "Estou farta disso e a vida não é realmente assim", comenta Márcia, também avó e encantada por sê-lo. Pilar tem passado amoroso e uma energia contagiante (ela canta e dança e ainda fuma), cria com a neta uma corrente energética tanto mais poderosa quanto contrasta com um tipo devastado. Como Pilar, a sua intérprete fuma... "bem menos" do que antes e "nunca de manhã". A acender um cigarro, fala do cineasta e do seu cameo no filme (dizendo: "Bebo de mais, fumo de mais, não vou durar muito") e remata, irónica como é: "Irrita-me a luta antitabágica, dum grande ridículo, com guetos para fumadores em sítios maravilhosos cheios de fumo de autocarro", como o centro de Lisboa.
Do realizador, destaca o método de direcção, a dar grande liberdade criativa, lançar desafios e acolher sugestões. De Pilar, dissera ele: "É uma avó diferente do que se espera.". "Deu-me total liberdade, só uns tópicos fundamentais. Comecei pelo guarda-roupa, a pensar numa pessoa cheia de vida, ali perto da fronteira, que terá vivido do outro lado e está fora do que a neta pensa." Nos "tópicos", "havia uma dança com a imagem dum concurso na televisão e improvisámos", exemplifica, aludindo ao samba de Martinho da Vila, que dança com Carla Chambel.
E há a canção que ela entoa, o bolero No te digo adiós... "Deu-me uma coisa na cabeça para cantar, não sei onde fui buscar isso, acabei a cena com grande vontade de chorar mas não podia, devia mostrar só o que ficava depois de me ter comovido", especifica na sua sabedoria. Fernando Lopes gostou, o que importa a quem, não obstante a experiência, declara: "O cinema mete-me um pouco de medo, é uma relação desconfiada da minha parte." Faltam-lhe nele as "três dimensões do palco, a imagem passa a grande velocidade, os gestos têm outra medida e peso", fica "aflita", sem saber "o que se vê ou não". Daí necessitar de uma "relação de grande confiança com a pessoa que dirige". Além de privilegiar o "fascínio pelo espectáculo" ao vivo, cedo descoberto.